Antiautoajuda para 2015
por Eliane Brum no El País
“Neste mundo, sentir-se mal pode ser um sinal claro de excelente saúde mental. Quem está feliz e saltitante como um carneiro de desenho animado é que talvez tenha sérios problemas. É com estes que deveria soar uma sirene e por estes que os psiquiatras maníacos por medicação deveriam se mobilizar, disparando não pílulas, mas joelhaços como os do Analista de Bagé, do tipo “acorda e se liga”. É preciso se desconectar totalmente da realidade para não ser afetado por esse mundo que ajudamos a criar e que nos violenta. Não acho que os felizes e saltitantes sejam mais reais do que o Papai Noel e todas as suas renas, mas, se existissem, seriam estes os alienados mentais do nosso tempo.
(…) Hoje me parece que algo novo se impõe, intimamente relacionado a tudo isso, mas que empresta uma concretude esmagadora e um sentido de urgência exponencial a todas as questões da existência. E, apenas nesse sentido, algo fascinante. A mudança climática, um fato ainda muito mais explícito na mente de cientistas e ambientalistas do que da sociedade em geral é esse algo. A evidência de que aquele que possivelmente seja o maior desafio de toda a história humana ainda não tenha se tornado a preocupação maior do que se chama de “cidadão comum” é não uma mostra de sua insignificância na vida cotidiana, mas uma prova de sua enormidade na vida cotidiana. É tão grande que nos tornamos cegos e surdos.
(…) O fato de se alienar – ou, como fazem alguns, chamar aqueles que apontam para o óbvio de “ecochatos”, a piada ruim e agora também velha – nem impede a corrosão acelerada do planeta nem a corrosão acelerada da vida cotidiana e interna de cada um. O que quero dizer é que, como todos os nossos gritos existenciais, o fato de negá-los não impede que façam estragos dentro de nós. Acredito que o mal-estar atual – talvez um novo mal-estar da civilização – é hoje visceralmente ligado ao que acontece com o planeta. E que nenhuma investigação da alma humana desse momento histórico, em qualquer campo do conhecimento, possa prescindir de analisar o impacto da mudança climática em curso.
(…) São Paulo é, no Brasil, a vitrine mais impressionante dessa monumental alienação. A maior cidade do país vem se tornando há anos, décadas, um cenário de distopia em que as pessoas evoluem lentamente entre carros e poluição, encurraladas e cada vez mais violentas nos mínimos atos do dia a dia. No último ano, a seca e a crise da água acentuaram e aceleraram a corrosão da vida, mas nem por isso a mudança climática e todas as questões socioambientais relacionadas a ela tiveram qualquer impacto ou a mínima relevância na eleição estadual e principalmente na eleição presidencial. Nada. A maioria, incluindo os governantes, sequer parece perceber que a catástrofe paulista, que atinge a capital e várias cidades do interior, é ligada também à devastação da Amazônia. O tal “mundo como o conhecemos” ruindo e os zumbis evolucionando por ruas incompatíveis com a vida sem qualquer espanto. Nem por isso, ouso acreditar, deixam sequer por um momento de ser roídos por dentro pela exterioridade de sua condição. A vida ainda resiste dentro de nós, mesmo na Zumbilândia. E é o mal-estar que acusa o que resta de humano em nossos corpos…”
Publicado em: 01/01/15
De autoria: casadevidro247
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